Quando falamos em anéis em objetos do Sistema Solar você imediatamente lembrará dos exuberantes anéis de Saturno, ou talvez dos mais discretos, mas ainda assim impressionantes, anéis em torno dos gigantes Júpiter, Urano e Netuno revelados em imagens capturadas no infravermelho.
Mas três pequenos corpos do Sistema Solar, através de campanhas observacionais com protagonismo de pesquisadores e instituições brasileiros, revelaram na última década inesperados sistemas anéis a sua volta. E a última dessas descobertas foi anunciada em primeira mão pelo astrônomo Felipe Braga-Ribas em uma das lives do ciclo Abril pra Astronomia, promovido pela Sociedade Astronômica do Recife (SAR) e pelo Projeto Céu Profundo: um tênue segundo anel foi detectado em torno do objeto transnetuniano (50000) Quaoar!
A jornada de descoberta de anéis em torno de pequenos corpos começa com Chariklo, um asteroide da classe dos Centauros, que teve seu anel anunciado em um trabalho de Felipe Braga-Ribas (UTFPR) e colaboradores em 2014 – seguido pelo anúncio em 2015 do anel do planeta anão Haumea, em trabalho liderado por J. L. Ortiz (Instituto de Astrofisica de Andalucía). Mais recentemente, vimos o anúncio de um primeiro anel no objeto trasnetuniano (50000) Quaoar em trabalho publicado em 2023 por Bruno Morgado (UFRJ) e colaboradores, com dados de observações realizadas entre 2018 e 2021.
Mas se a detecção de anéis em pequenos corpos do Sistema Solar já é um resultado surpreendente que evidencia o poder das técnicas observacionais e computacionais envolvidas no processo, a surpresa, o espanto e o orgulho pela ciência brasileira dobra com o anúncio da descoberta de um segundo anel em torno de Quaoar!
Em um artigo aceito para publicação no periódico Astronomy & Astrophysics Letters (já disponível no ArXiv), Chrystian Pereira (Observatório Nacional) e colaboradores anunciam que durante observações de uma ocultação estelar por Quaoar em agosto de 2022, além da confirmação do primeiro anel já observado, os dados apontaram a existência de um segundo anel envolvendo o pequeno e distante corpo.
Quem é Quaoar?
Orbitando o Sol além da órbita de Netuno, a uma distância média que é 43 vezes maior que o raio da órbita da Terra, Quaoar é um pequeno objeto de diâmetro estimado em torno de 1100 km. Seu primeiro anel, batizado de Q1R foi descoberto em observações realizadas entre 2018 e 2021.
Suas pequenas dimensões (aproximadamente um terço do diâmetro da Lua) e sua grande distância tornam impossível fazer imagens que possam resolver detalhes de sua superfície ou mesmo definir sua forma, por isso, são usados métodos indiretos – mas muito precisos – para determinar sua geometria.
Como são realizadas as observações?
Pra deixar bem claro o tamanho do desafio: visto da Terra, Quaoar tem o diâmetro aparente de uma moeda de um real a 154 km distância. Então observações diretas não são uma opção. Mas os pesquisadores envolvidos no trabalho são capazes de computar com grande precisão sua órbita e prever quando e onde é possível observar o trânsito desse objeto em frente a uma estrela, ocultando-a. Esse pequeno e breve eclipse é capaz de nos revelar detalhes da geometria do corpo eclipsante e de quebra fornecer informações sobre a presença ou não de uma atmosfera ou de sua composição.
Mas assim como um eclipse solar total só é visível ao longo da estreita faixa sobre a superfície terrestre onde a sombra da Lua é diretamente projetada pelo Sol, a observação de ocultações estelares por planetas ou pequenos corpos do Sistema Solar também exige que os observadores estejam posicionados no lugar e na hora certos para essa desafiadora observação. Determinar estas posições e instantes com precisão é o primeiro, mas não o único, desafio para a realização destas observações.
A imagem abaixo mostra a localização de observatórios posicionados na faixa de visibilidade da ocultação. Os pontos laranja representam estações onde o céu estava nublado durante a ocultação, os pontos pretos representam as estações onde a ocultação foi observada com sucesso e o ponto vermelho marca a estação onde a observação não detectou a ocultação. A linha sólida representa o limite da sombra de Quaoar e as linhas pontilhadas delimitam o contorno dos aneis Q1R e Q2R.
Limites na sensibilidade dos instrumentos e meteorologia desfavorável são o grande obstáculo para uma observação que exige grande precisão e sensibilidade instrumental. Por sorte, a faixa de ocultação cobria também o arquipélago do Havaí, um dos melhores sítios para observação astronômica do hemisfério norte e lar dos observatórios Gemini Norte, de 8.1m de abertura e CFHT (Canada-France-Hawaii Telescope) de 3.6m. Estes telescópios de grande abertura e com instrumentos de grande sensibilidade foram capazes de resolver a presença do tênue segundo anel de Quaoar.
E quais os resultados?
Os telescópios apontados para a estrela Gaia DR3 4098214367441486592 esperavam ver o brilho da estrela ser atenuado pela passagem de Quaoar, da mesma forma que a passagem da Lua eclipsa o brilho do Sol em um eclipse solar.
Comparando a variação do brilho da estrela em observações realizadas em diferentes posições é possível traçar o contorno do objeto eclipsante. Mais duas breves quedas no fluxo luminoso eram esperadas antes e após a ocultação pelo corpo central, causadas pelo já conhecido anel Q1R, envolvendo Quaoar a uma distância média de 4100km. A surpresa veio de outra sutil queda de fluxo encontrada nos dados numa posição intermediária entre Quaoar e o anel Q1R.
Esta sutil, mas perceptível, queda no fluxo antes e depois da ocultação principal é suficiente para revelar a presença de um segundo anel, orbitando Quaoar a 2500 km de distância.
A análise dos dados da observação permitem não apenas caracterizar Quaoar e seus anéis, mas abre também as portas para discutir a existência destas estruturas numa região além do limite de Roche clássico, onde se esperaria que essas partículas se aglutinassem formando um satélite. Efeitos de ressonância com o período de rotação de Quaoar e com seu pequeno satélite Weywot e a ocorrência de colisões mais elásticas entre as partículas dos anéis são fatores que podem contribuir para a existência e longevidade de anéis além do limite de Roche e o sucesso nos métodos usados em sua detecção podem significar que outros sistemas similares possam ser encontrados em futuras observações. E esperamos que mais uma vez a presença e o protagonismo brasileiro sigam fazendo a diferença.